sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pelas águas – uma viagem no tempo e no espaço.



Pesquisa Cênica: "A Oralidade e a Cameloturgia - Uma pesquisa cênica do Porto ao Rio", projeto conjunto dos grupos O Imaginário - RO e a Cia. Será O Benidito?! - RJ.

A pesquisa cênica envolve prática de criação, de formação e de pesquisa histórica baseada na oralidade e de sistematização de processos dramatúrgicos da oralidade e da cameloturgia, selecionado pelo Programa Rumos Itaú Cultural Teatro, que em sua primeira edição tem como finalidade promover um intercâmbio entre teatros de grupo de todas as regiões do Brasil, contribuindo para a articulação desses coletivos e para o desenvolvimento de pesquisa na área teatral.

Uma viagem no tempo e no espaço.

A grande largada do nosso processo de pesquisa aconteceu no ano passado, no período de 22 de novembro a 22 de dezembro de 2010. Fizemos uma viagem pelos rios da Amazônia, descendo de Porto Velho a Manaus, refazendo o caminho percorrido pelos trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no início do século passado. Nesta etapa da pesquisa os aspectos ligados à vivência e à experimentação, que chamamos de campo sensorial (atuadores pesquisadores vivenciam as emoções e sensações), balizou todo o trabalho. Cada atuador pesquisador registrou num diário de bordo as sensações e as emoções sentidas durante os trinta dias da viagem e além de buscar fatos e registros históricos que ficaram da presença ou da passagem dos trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira Mamoré ao longo do rio madeira.

Iniciamos a viagem sensorial, em busca de emoções e sentimentos vividos pelos trabalhadores que vieram para Porto Velho no início do século passado para a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. 
Nesta fase os objetivos foram:

1 – Identificar registros e fatos históricos da passagem dos trabalhadores;
2 – Verificar as influências e as alterações na religiosidade e nas crenças do povo ribeirinho;
3 - Vivenciar experiências sensoriais / emocionais, relacionadas ao tempo ribeirinho, convivência, costumes e as condições do transporte fluvial e outras.

Alguns relatos extraídos dos diários de bordo:

...nesta viagem pelos rios da Amazônia olho pra estas trajetórias de vida com orgulho e satisfação, levanto a cabeça e inflo o peito para deles falar, mesmo incomodado por lembranças do passado só eu sei o que sinto”.

“...Esbarramos numa praia, a boreste, o capitão começou então a medir a profundidade do calado, vamos tranquilos no tempo do rio”

“...O barco vai seguindo entrando a manhã, na proa do leme após o café matinal se junta um grupo conversando enquanto o piloto conduz a embarcação, a floresta vai passando, ficando pra trás, assunto dos homens é o mais variado, passando da navegação ao gosto de cada um, passam varias madeiras boiando, madeira que dá nome ao rio, passa então um pau em pé, o capitão mostra e diz que quando criança ouviu que – “pau em pé é quando alguém morreu afogado no rio” – o dia vai passando lento, dando o tom necessário da calma que se deve ter nestas paragens, não há pressa, só há rio, floresta”.

“...a noite escura e nosso navegador usava o farol para conduzir o barco, muitas madeiras passavam, galhadas realmente grandes, atento o piloto se mantinha segura ao leme com o farol em riste, um estrondo e o barco para, encalhamos, rapidamente o piloto desliga o motor, o barco perde a força, encalhamos, sim, não, o capitão corre ao comando, logo estamos a deriva, o capitão toma o leme e manda o piloto verificar o acontecido de voadeira, ele leva outro marujo, não encalhamos, mas uma galhada bateu  no fundo do barco entortando o pé de galinha que batia na elice, o estrago não foi grande, mas tivemos que encostar na margem onde estávamos, a pericia do capitão e de seus marinheiros nos conduziram com segurança e com a voadeira até a margem, o barco rodou no eixo algumas vezes até todos se aquietarem e ouvirem o comando do capitão, posso dizer que fiquei atento calmo, mas alerta a qualquer movimentação necessária, olhando tudo de um lado ao outro do convéns, tentava compreender a situação, mente pensava rápido comandada pelo coração que dava ao corpo todas essas informações, não consigo descrever estas emoções, mente rápida, olhos atentos, a calma alerta, hoje o rio nos mostrou por que se chama madeira”.

“...O sol não apareceu nesta manhã, logo cedo o capitão de pé já trabalhava no conserto, foi o dia clarear pra tudo começar, eu me pus de pé para acompanhar esta movimentação, verificado o estrago que o tronco havia feito, e sem condições e sem condições de efetuar o conserto no local, o jeito foi aproveitar a corrente e com o auxilio da voadeira empurrar o barco até o próximo destino, para lá procurar uma forma de consertar, ou reboque até onde se poderia efetuar o conserto, perdemos a palheta, a barra de direção, e outros pequenos estragos danificaram esta região sensível do barco que comanda a navegação e da direção”.

“...Ontem foi um dia entediante, nada a fazer senão balançar no banzeiro, ver os barcos que passavam, chegavam e partiam, alguns chegavam carregados de mercadorias que será deixada aqui, ou embarcada em outro barco para seguir para outros portos, alguns vem vazios para levar mercadorias ou gente, o sol foi quente como hoje, trazendo chuva breve no meio ao fim da tarde, sol quente de rachar desde o amanhecer, trabalhei duro mais com gratificação, sendo só o sol o castigo do dia, sol, luz do dia, queima esta pele, ilumina meu dia, ontem e hoje o sol brilhou, a chuva, só um cheiro, fechou o tempo fazendo toda a correria de tirar a roupa da corda, deu uma cheirada, e foi-se, assim como se anunciou, o corpo banzeirava ao sabor do rio, do sol, trazendo um sono lezo, suorento, daqueles que escorrem pelo corpo, descendo do pé do cabelo, abrindo caminho pelas costas, e se guardando dentro da calça, o anuncio da chuva ontem como hoje trouxe os diabinhos invisíveis, mosquitos minúsculos, de picada doida, mas kamikazes, picavam e não fugiam, morrendo com um tapa enquanto se fartavam do sangue alheio, passou a chuva eles se foram como vieram, do nada”

“...Não era o tédio, era o tempo, outro tempo, outros tempos, partimos, e outro tempo se fez presente, o tempo da cidade me sufocava, me incomodava, um vai-e-vem, como uma cidade no meio do rio pode ter um tempo tão incomodo, navegando desde cedo, quando o dia acorda, o tempo não me incomoda, nem passa, que tempo é esse do rio que de um lado se vê verde, uma casa aqui acolá, o tempo, tempo não há, o sol aparece no céu azul, se esconde nas nuvens brancas ou cinzas, vai chover? vem o sol? o barco desliza no rio deixando a água pra trás, quanto verde, claro, escuro, verde amarelado, verde branco, verde preto, no meio do verde a madeira, marrom? não, branca, um branco cinza, um branco pálido, com tons de bolor verde, as vezes laranja ou amarelado, esse tempo das cores vou vendo passar, vai batendo em mim, o céu tem tanto cinza, tanto azul, quando penso na minha retina, quanto tempo demoro pra perceber tanto tempo, não dá pra explicar mas o tempo, onde vai, onde está, pra que”.

“...Fiquei doente, dor de cabeça, dor no corpo e desarranjo intestinal com diarréia, passei o dia todo muito ruim, acho que pode ser uma infecção intestinal devido a dieta constante de peixe e da comida, pois o tempero é bem diferente do que estou acostumado, também pode ser uma virose, agravada pela chuva de ontem e da roupa que lavei, vou observar e me medicar aos poucos. ...eu não consegui sair do barco, o corpo todo doía, uma diarréia constante, dor de cabeça forte, tive o corpo arrasado o dia todo”

Além do diário de bordo, registramos em vídeo e fotografia as conversas e os encontros. São registros que demonstram a riqueza e a força da oralidade.

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